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Por Marcelo Henrique de Carvalho

 

A era da informação, marcada pela exponencial geração e circulação de dados, potencializou o valor do dado pessoal como ativo estratégico, tanto para indivíduos quanto para organizações. Nesse contexto, emergem questões centrais relativas à proteção de dados e à privacidade, que transcendem o campo técnico e alcançam o núcleo do Direito Constitucional e Empresarial. O presente artigo propõe uma análise densa e crítica sobre a proteção de dados e a privacidade, sob o prisma constitucional e empresarial, considerando os desafios, fundamentos e impactos jurídicos oriundos da sociedade digital.

O conceito de proteção de dados decorre da necessidade de salvaguardar direitos fundamentais frente ao avanço tecnológico e à crescente capacidade de armazenamento, tratamento e circulação de informações. Historicamente, a preocupação com a privacidade pode ser traçada desde o clássico artigo de Warren e Brandeis (1890), que consagrava o “direito de ser deixado em paz”. No entanto, foi apenas nas últimas décadas do século XX, com a informatização dos cadastros e a globalização do fluxo informacional, que se consolidaram normativos específicos destinados à tutela de dados pessoais.

A privacidade, enquanto direito fundamental, é multifacetada. Pode-se identificar diversas dimensões, tais como a privacidade de informações (controle sobre dados pessoais), a privacidade de decisões (autonomia para tomadas de decisões íntimas) e a privacidade territorial (proteção do espaço privado). A proteção de dados, por sua vez, assume papel instrumental na efetivação do direito à privacidade, representando um mecanismo de controle sobre o uso e tratamento das informações pessoais, o qual deve ser compreendido como um valor bem acima de um mero ativo, mas um bem cuja guarida e proteção lhe competem, exclusivamente, ao seu detentor.

A Constituição Federal de 1988, embora não haja dedicado capítulo específico à proteção de dados, traz dispositivos que, interpretados sistematicamente, conferem respaldo à tutela da privacidade. O artigo 5º, incisos X e XII, assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, bem como o sigilo da correspondência e das comunicações. Tais dispositivos, ao consagrarem a proteção da esfera íntima do indivíduo, alicerçam juridicamente a proteção de dados como direito fundamental.

Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 115/2022, o direito à proteção de dados pessoais foi expressamente reconhecido como direito fundamental autônomo, inserindo-se no rol do Art. 5º, ao lado da privacidade. Este reconhecimento constitucional fortalece o arcabouço jurídico protetivo e impõe novos desafios interpretativos e normativos, sobretudo diante da necessidade de harmonização com outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, o acesso à informação e a livre iniciativa.

Sob o prisma constitucional, a proteção de dados exige a observância de princípios fundamentais, como: o da Dignidade da Pessoa Humana, a qual determina que  o tratamento de dados deve respeitar a dignidade, autonomia e integridade dos titulares; o da Legalidade, cujo imperativo é que a coleta e o tratamento de dados somente podem ocorrer conforme previsão legal, vedando-se práticas arbitrárias e abusivas; o da Proporcionalidade, impondo que medidas restritivas à privacidade devem ser adequadas, necessárias e proporcionais ao fim buscado, preservando o núcleo essencial do Direito; e o da Transparência, estabelecendo que os titulares têm direito à informação clara e acessível acerca do tratamento de seus dados.

O tratamento de dados, em especial no âmbito empresarial, demanda a ponderação entre o direito à proteção dos dados e outros direitos constitucionalmente protegidos, como o direito à livre iniciativa e à livre concorrência. O desafio reside em compatibilizar o legítimo interesse das organizações na utilização de dados, para fins de inovação, eficiência e competitividade, com a necessidade de preservar a autodeterminação informacional dos titulares.

No cenário empresarial contemporâneo, os dados assumem papel de ativo estratégico para a obtenção de vantagem competitiva, desenvolvimento de novos produtos e personalização de serviços. Esse contexto traz à tona a necessidade de um robusto compliance normativo, não apenas para evitar sanções, mas como elemento central de governança corporativa e responsabilidade social.

Nesse sentido, a Lei Federal n. 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD) estabelece o regramento para o tratamento de dados pessoais no Brasil. Inspirada pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR), a LGPD impõe às empresas, obrigações específicas, que incluem, mas não se limitam a: base legal para tratamento, determinando que o tratamento de dados deve estar fundamentado em uma das bases legais previstas, como consentimento, execução de contratos, cumprimento de obrigação legal ou legítimo interesse; finalidade, assim compreendida como o compromisso de que os dados coletados devem ter finalidade determinada, explícita e legítima, vedando-se o tratamento para fins incompatíveis ou alheios ao motivo pelo qual foi autorizada a coleta; acervo mínimo de dados, impondo que o tratamento deve se limitar ao mínimo necessário para a realização da finalidade pretendida; segurança e prevenção, tornando-se imperiosa a responsabilidade das empresas pela adoção de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados contra acessos não autorizados, vazamentos e destruição acidental ou ilícita; e, consequentemente, a responsabilização e prestação de contas, tornando as empresas obrigadas a demonstrar seus protocolos de segurança, bem como a adoção de medidas eficazes e capazes de comprovar o cumprimento das normas de proteção de dados, sob pena de sofrerem pleitos indenizatórios em seu desfavor.

A implementação de programas de governança de dados é imprescindível para assegurar conformidade com a LGPD e mitigar riscos jurídicos, de reputação e financeiros. Estruturas de governança eficazes devem contemplar, sobretudo, medidas como o mapeamento de fluxos de dados e identificação de pontos críticos; políticas claras de privacidade, segurança da informação e resposta a incidentes; treinamento contínuo dos colaboradores e conscientização organizacional. Além disso, é imperativo legal, portanto, obrigatória a nomeação de um Encarregado pelo Tratamento de Dados (DPO), responsável por atuar como canal de comunicação entre empresa, titulares e autoridade nacional.

Mais do que apenas cumprir a Lei, as empresas devem criar uma consciência corporativa no sentido de que investir em privacidade e proteção de dados agrega valor à marca, fomenta a confiança de clientes e parceiros e pode se tornar diferencial competitivo em mercados globalizados, nos quais a proteção de dados é vista como requisito de acesso.

É mister observar que a velocidade das transformações tecnológicas e o surgimento de novas práticas de tratamento de dados, tais como a utilização de inteligência artificial, big data e inovações como a internet das coisas (IoT), impõem desafios crescentes ao Direito. O arcabouço jurídico, ainda que robusto, enfrenta limitações diante de inovações disruptivas, exigindo constante atualização normativa e interpretativa. Essa é, aliás, a essência da Hermenêutica Jurídica, mais comum em países adeptos à common law, porém, essencial também, em ordenamentos como o do Brasil, com sistemática positivista.

Em tempos de crescimento de tecnologias movidas por inteligência artificial, a aplicação de seus algoritmos potencializa tanto a capacidade de análise quanto os riscos de discriminação e decisões automatizadas, muitas vezes opacas ao controle e compreensão dos titulares. O desafio jurídico reside em assegurar a motivação e possibilidade de auditoria das decisões, a revisão humana e a prevenção de tratamentos discriminatórios, em consonância com os princípios da LGPD.

Se a preocupação com a cautela dos dados merece tanto relevo no plano nacional, no internacional, a preocupação não é menor. A globalização dos fluxos de informação exige atenção especial às transferências internacionais de dados, que devem observar requisitos de adequação e garantir que os países receptores ofereçam grau de proteção compatível com o ordenamento brasileiro. A inobservância dessas regras pode acarretar sanções severas e comprometer relações comerciais, pendendo a responsabilidade em desfavor da empresa que, sem o devido cuidado, comprometeu os dados protegidos ou lhes entregou a quem não tratou as informações sensíveis como de praxe.

O descumprimento das normas de proteção de dados enseja a aplicação de sanções administrativas, que variam de advertências a multas significativas, podendo alcançar até 2% do faturamento da empresa, limitadas a R$ 50 milhões por infração. Além das sanções administrativas, subsiste a possibilidade de responsabilização civil, com dever de reparação dos danos causados aos titulares dos dados indevidamente tratados.

Dentro desse viés, a judicialização de questões relacionadas à proteção de dados tem crescido exponencialmente, exigindo do Poder Judiciário compreensão técnica e sensibilidade constitucional para ponderar interesses em conflito e concretizar direitos fundamentais. Afinal, na atual conjuntura jurídico-normativa, os dados certamente integram o patrimônio de cada cidadão, independentemente de sua natureza imaterial, devendo sua proteção ser vislumbrada como um Direito Fundamental.

Nessa linha, a proteção de dados e a privacidade, à luz do Direito Constitucional e do Direito Empresarial, apresentam-se como temas centrais na sociedade contemporânea. A consagração constitucional desses direitos e a positivação de normas setoriais, como a LGPD, impõem às empresas e ao Estado o dever de desenvolver mecanismos eficazes de governança, transparência e responsabilização. A complexidade do fenômeno demanda constante atualização normativa, diálogo interdisciplinar e construção de uma cultura de respeito à privacidade como Direito Fundamental.

Portanto, a proteção de dados pessoais não constitui apenas obrigação formal, mas um verdadeiro imperativo ético e jurídico, indispensável à preservação da dignidade humana, à promoção da inovação responsável e à consolidação de ambientes empresariais pautados pela confiança mútua e pelo respeito aos direitos das pessoas.

 

Marcelo Henrique de Carvalho é professor, jurista, escritor e consultor sênior em Direito Constitucional e Empresarial. Titular da Coluna Falando Direito, originalmente escrita para o SP Notícias e o RJ Notícias, replicada em vários periódicos.

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