A Responsabilização das Redes Sociais Por Conteúdos Veiculados Por Usuários e os Limites da Liberdade de Expressão

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O advento das redes sociais digitais, fenômeno característico da era da pós-modernidade líquida, conforme delineada por Zygmunt Bauman, trouxe à tona uma série de desafios jurídicos que tensionam os fundamentos do Estado Democrático de Direito. A instantaneidade da comunicação e a amplificação ilimitada da voz do indivíduo — outrora marginal ou silenciado — se converteram, paradoxalmente, em ameaças à própria tessitura democrática, especialmente diante da proliferação de conteúdos ilícitos, como fake news, discursos de ódio, incitação à violência e apologia ao crime. Em tal contexto, a reflexão jurídica sobre a responsabilização das plataformas digitais torna-se urgente e inadiável.

Este estudo propõe-se a analisar, sob o prisma do Direito Constitucional, a legitimidade e a necessidade da responsabilização das redes sociais pelos conteúdos que hospedam, à luz dos princípios da liberdade de expressão, da dignidade da pessoa humana e da proibição do retrocesso democrático, articulando ainda as premissas do marco civilizatório constitucional de 1988 com os desafios contemporâneos do ecossistema digital.

A liberdade de expressão — garantida no art. 5º, inciso IV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 — constitui-se em verdadeiro pilar estruturante do regime democrático. Ela assegura o pluralismo de ideias, a crítica ao poder constituído e a manifestação da individualidade. Contudo, como toda liberdade fundamental, não se reveste de caráter absoluto. Tal compreensão é corroborada pela própria Constituição, ao vedar, em seu art. 5º, inciso XLIV, a prática do racismo, bem como ao criminalizar a apologia ao crime e ao criminoso (art. 287 do Código Penal).

No seio dessa tensão entre liberdade e responsabilidade, impõe-se o reconhecimento de que o discurso de ódio, as fake-news e as manifestações discriminatórias não encontram guarida na moldura do Estado de Direito. A Suprema Corte brasileira tem reiteradamente decidido nesse sentido, destacando que “a liberdade de expressão não pode ser instrumento de destruição da Democracia” (cf. ADPF 572, Rel. Min. Alexandre de Moraes).

As plataformas digitais — Facebook, X, YouTube, Instagram, entre outras — extrapolam o mero papel de intermediadoras tecnológicas. Elas são, em sentido jurídico-constitucional, espaços públicos digitais (JÜRGEN HABERMAS), onde se constrói a arena do discurso democrático contemporâneo. Ademais, detêm algorítmos opacos e economicamente orientados, os quais amplificam conteúdos virais, independentemente de sua veracidade ou licitude, em razão de lógicas de engajamento e monetização. Nesse sentido, não é mais possível sustentar a ideia de neutralidade dessas empresas. O discurso jurídico deve evoluir para reconhecer a responsabilidade civil e constitucional subsidiária, ou, até mesmo, solidária das plataformas, especialmente quando se omitirem diante de denúncias de conteúdos manifestamente ilícitos, ou quando contribuírem, por meios algorítmicos, para sua difusão.

A Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, constitui o alicerce normativo da regulação da Internet no Brasil. Em seu art. 19, estabelece que provedores de aplicações de internet só poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem as providências para a remoção do conteúdo. A interpretação literal dessa norma, no entanto, tem sido objeto de críticas pela doutrina e pela jurisprudência, especialmente diante de conteúdos que violam direitos fundamentais de forma manifesta. A Teoria do Dever de Vigilância Proporcional, inspirada em jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, tem ganhado espaço no cenário nacional. De acordo com essa concepção, quando os conteúdos forem claramente ilegais, como imagens de abuso infantil, incitação ao terrorismo, racismo explícito ou apologia ao nazismo, não se pode exigir prévia ordem judicial, pois o dever de cuidado e diligência impõe uma atuação imediata da plataforma, sob pena de responsabilização solidária. Além de concordar com a interpretação dessa linha teórica, ousa-se asseverar que se as “big-techs” dispõem de recursos tecnológicos suficientes para indentificar as publicações que farão mais sucesso com seus usuários, direcionando a elas grande impulsionamento. Nesse sentido, é certamente factível o filtro inverso, vetando manifestações de ódio, ilegalidade ou fake-news.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem avançado na compreensão da necessidade de conter os abusos nas redes sociais. Destaca-se, nesse cenário, o Inquérito das Fake News (INQ 4781), que investiga a atuação de redes coordenadas para atacar as instituições democráticas. Também merecem menção as decisões que chancelam a remoção de conteúdos que violam os direitos da personalidade e os preceitos constitucionais de igualdade, dignidade e não discriminação. A Corte tem afirmado, de modo reiterado, que a internet não é uma terra sem lei. Assim, a responsabilização das redes sociais alinha-se ao princípio da efetividade dos direitos fundamentais, um dos pilares do neoconstitucionalismo latino-americano.

A responsabilização das redes sociais pelos conteúdos que veiculam não configura censura prévia, mas sim um imperativo constitucional de proteção da dignidade humana, da pluralidade democrática e da ordem pública informacional. A ausência de responsabilização estimula a impunidade e fomenta ambientes tóxicos que solapam o convívio civilizado e o pacto democrático. E corre extamente nesta linha o histórico julgamento atinente ao tema, no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Urge, portanto, uma regulação jurídica sofisticada, que conjugue princípios constitucionais com a lógica tecnológica contemporânea, impondo às plataformas deveres positivos de monitoramento proporcional, transparência algorítmica e cooperação com as autoridades.Como bem advertia Norberto Bobbio, “a era dos direitos exige também a era dos deveres”. Nesse espírito, a liberdade digital deve caminhar lado a lado com a responsabilidade institucional, sob pena de colapsarmos os alicerces do próprio Estado Democrático de Direito que sustenta e legitima nossa convivência plural.

Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013.

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