BRASÍLIA – Durante a pandemia da covid-19, o general Eduardo Pazuello orientou o então presidente da República, Jair Bolsonaro, a divulgar um medicamento sem autorização de uso no Brasil, a proxalutamida. Pazuello também supervisionou a distribuição de comprimidos desse medicamento pelo tenente-coronel Mauro Cid, à época ajudante de ordens do presidente.
Dados extraídos pela Polícia Federal do telefone celular de Mauro Cid usado em 2021, obtidos com exclusividade pelo Estadão, mostram que Bolsonaro determinou a distribuição do medicamento a seus aliados e revelam a participação de Pazuello na operação.
Procuradas, as defesas de Bolsonaro e de Mauro Cid não quiseram se manifestar. Pazuello não respondeu.

Na época desses diálogos, o general já havia deixado o cargo de ministro da Saúde, que ocupou de maio de 2020 a março de 2021. As conversas mostram que ele continuou atuando como conselheiro de Jair Bolsonaro sobre a covid-19 mesmo após deixar o posto.
Em 8 de abril, Pazuello enviou a Cid uma mensagem de WhatsApp que deveria ser encaminhada ao presidente sugerindo que Bolsonaro falasse do medicamento em transmissão para seus seguidores.
“Fala PR. Acho que o sr. podia falar hoje na live sobre a Proxalutamida. O senhor abriria o assunto com uma fala ‘preparada’ e depois o Hélio entraria com as questões técnicas/científicas!! Tem muito político tentando aparecer e já estão tentando puxar o protagonismo para eles!!”, escreveu Pazuello.

Cid disse que iria verificar com o presidente. Horas depois, Pazuello enviou um texto para servir como base para a live, dizendo que esse medicamento foi usado na crise do oxigênio em Manaus e teve bons resultados –sem ter nenhuma comprovação científica.
Na live, Bolsonaro de fato abordou o assunto sugerido por Pazuello. Com a presença de um integrante do Ministério da Saúde ao seu lado, o então presidente da República pediu que ele falasse sobre o tema. “Depois de contrair o vírus, tem que buscar medicamento. O que você teria a falar sobre a proxalutamida?”, afirmou Bolsonaro na live do dia 8 de abril de 2021.
No dia seguinte, Cid mandou uma mensagem a Pazuello dizendo que precisava do contato de uma pessoa, sem especificar do que se tratava. Após um telefonema entre eles, cujo teor da conversa não foi captado na quebra de sigilo, os dois passam a conversar sobre o recebimento de um pacote do medicamento.
Pazuello perguntou: “E ae?”. Cid respondeu por áudio: “Em dez minutos vai estar comigo, general, o pacote”. Pazuello, também por áudio, pediu que Cid lhe telefonasse depois. “Quando você puder falar com calma, me ligue pra que a gente possa fazer um protocolo para o uso dessa medicação, tá bom? Vou te passar os contatos, etc, pra poder coordenar. Por favor, tô te esperando. Abraços”. Ouça os áudios:
Às 17h57 do mesmo dia, Cid enviou uma foto de uma sacola transparente contendo diversos tabletes de um medicamento. “280 comprimidos”, disse a Pazuello.

Mauro Cid perguntou a Pazuello se a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) tinha aprovado o uso do medicamento e se era possível determinar a sua compra pública. E disse que essa era uma pergunta de Bolsonaro. O general respondeu que a comissão havia pedido correções e ainda iria reavaliar o assunto.
Apesar da declaração do ex-ministro, as ações que levaram à suspensão do uso da substância inclusive para pesquisa foram motivadas por questões éticas verificadas pela Conep e pela expansão ilegal dos testes com a proxalutamida para o Rio Grande do Sul e o Amazonas, especificamente em Manaus.

No dia 10 de abril, Cid pediu a Pazuello para coordenar a entrega do medicamento para a família do deputado Luciano Bivar (União Brasil-PE). Ouça o áudio:
Depois, Cid repassa a Pazuello mensagens sobre o estado de saúde do irmão de Bivar.
Procurado, Bivar confirmou ter recebido o medicamento a pedido de Bolsonaro, mas disse que não foi usado. “Me recordo sim, ele foi muito gentil em pedir que esse remédio chegasse às minhas mãos, mas o médico do meu irmão não administrou o remédio”, afirmou. “Eu agradeci o envio do medicamento, mas não falei se tinha usado ou deixado de usar não”, disse Bivar.
Por último, no dia 11 de abril, Mauro Cid informa a Pazuello sobre outras duas pessoas que tinham recebido a proxalutamida e pede para ele monitorar o estado de saúde delas.
“Força, general. Só pra passar pro senhor pro senhor ficar acompanhando, eu tô aqui em Goiânia e vim entregar o medicamento agora pro Uugton, é um empresário aqui dessas bandas sertanejas, e também pro irmão do Amado Batista. Tá, então já estamos com três pessoas pra fazer o acompanhamento aí. Força”.
Ouça o áudio:
General no comando da Saúde
Pazuello comandou o Ministério da Saúde no auge da pandemia de covid-19. Na época, o então ministro coordenou ações amplamente criticadas pela comunidade científica, como a divulgação de um protocolo autorizando o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento da doença.
O uso das drogas, cuja ineficácia contra a covid-19 é comprovada, foi amplamente defendido por Bolsonaro e endossada por Pazuello. O general foi alçado ao posto de ministro da Saúde após Nelson Teich se recusar a editar o protocolo recomendando os medicamentos ineficazes.
Após a saída de Teich, Pazuello e outros militares assumiram cargos dentro da pasta iniciando o período de maior negacionismo à frente do Ministério da Saúde. A pandemia de covid-19 matou cerca de 700 mil brasileiros durante o governo Bolsonaro.
Também sob Pazuello o Brasil viveu a crise de escassez de vacinas contra a doença. Na época, alinhado ao discurso do presidente Jair Bolsonaro contra os imunizantes, Pazuello recusou a compra de doses da vacina Pfizer em um dos momentos mais graves da pandemia.
O general também esteve à frente da pasta durante a crise de oxigênio em Manaus, cuja falta do insumo levou a mortes na capital amazonense durante a disseminação de uma nova variante do vírus.
Medicamento não tem uso aprovado ao redor do mundo
A proxalutamida é um anti-androgênio não-esteroidal produzido na China para testes no combate a determinados tipos de câncer. Em 2021, bolsonaristas começaram a defender, com base em informações falsas, o uso desse remédio para o combate à covid-19.
Até hoje a proxalutamida não é autorizada em órgãos de referência ao redor do mundo nem para o combate ao câncer, finalidade para a qual ela tem sido estudada. A substância não consta, por exemplo, como medicamento autorizado nos registros da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) ou de agências regulatórias de países-membros da União Europeia. Nos EUA, a autoridade americana, a FDA também não aprovou o uso da proxalutamida como medicamento.
A Anvisa chegou a autorizar a realização de estudos do uso do medicamento no tratamento da covid, mas a importação foi suspensa por causa da descoberta de irregularidades nesses estudos. Uma dessas irregularidades foi a importação de comprimidos em quantidade muito maior do que a autorizada nos estudos. O Ministério Público Federal abriu investigação na época sobre o caso e descobriu que essa importação em quantidade maior permitiu o desvio de cargas do medicamento.