Marcelo Henrique de Carvalho
A complexidade do Direito Internacional Privado, conjugado à soberania dos Estados e à necessidade de cooperação entre jurisdições, encontra talvez uma de suas mais sofisticadas manifestações no tema da eficácia de decisões judiciais e ordens executivas emanadas por autoridades estrangeiras em território nacional. No caso brasileiro, a questão assume contornos específicos a partir da Constituição Federal de 1988, que não apenas estabelece a moldura do princípio da soberania e da separação de Poderes, mas também disciplina os mecanismos pelos quais atos estrangeiros podem ser recepcionados e reconhecidos internamente.
O ponto de partida incontornável é o princípio da soberania, consagrado no artigo 1º, inciso I, da Constituição. A soberania é atributo essencial do Estado brasileiro, e, como tal, implica não apenas a capacidade de autodeterminação interna e externa, mas também a exclusividade de jurisdição dentro de seu território. Essa prerrogativa encontra eco no artigo 21 da Carta Magna, ao estabelecer competências privativas da União, incluindo a manutenção das relações com Estados estrangeiros.Por conseguinte, qualquer ordem emanada de autoridade estrangeira, seja executiva ou judicial, não pode ter eficácia direta e automática em território brasileiro. Permitir o contrário equivaleria a uma renúncia inconstitucional da soberania, o que violaria não apenas a Constituição, mas a própria lógica fundacional do Estado nacional.
Embora a soberania imponha limites rígidos, o constituinte reconheceu a importância da cooperação jurídica internacional. Por essa razão, o artigo 105, inciso I, alínea “i”, da Constituição Federal, atribuiu ao Superior Tribunal de Justiça a competência exclusiva para homologar sentenças estrangeiras e conceder exequatur às cartas rogatórias. Esse dispositivo é de importância capital, pois estabelece o filtro constitucional que permite a recepção e a eficácia de decisões estrangeiras, resguardando ao mesmo tempo a soberania e a necessidade de intercâmbio jurisdicional.A homologação pelo STJ não constitui mera chancela formal, mas ato de reconhecimento da validade da decisão estrangeira dentro da ordem jurídica nacional. Sem tal homologação, a sentença estrangeira carece de qualquer eficácia no Brasil, podendo ser considerada inexistente para fins executórios ou probatórios.
Outro instrumento normativo fundamental é o exequatur às cartas rogatórias, igualmente previsto no artigo 105, I, “i”, da Constituição. Trata-se da autorização conferida pelo STJ para que atos processuais determinados por autoridade estrangeira possam ser cumpridos no Brasil, como citação, intimação, colheita de provas ou outros meios de cooperação processual. Sem a concessão do exequatur, tais ordens não possuem validade alguma em território nacional, ainda que revestidas de autoridade legítima no país de origem. O exequatur, portanto, é expressão concreta do respeito à soberania e da necessidade de controle jurisdicional, evitando que atos potencialmente ofensivos à ordem pública brasileira ou à Constituição possam ser praticados de maneira automática.
No plano infraconstitucional, a matéria é regulada primordialmente pelo Código de Processo Civil de 2015, em especial pelos artigos 960 a 965, que tratam da homologação de decisão estrangeira e da concessão de exequatur. O CPC estabelece os requisitos de validade, incluindo:a competência da autoridade estrangeira para prolatar a decisão; a regular citação ou notificação das partes; o trânsito em julgado da decisão estrangeira; a ausência de ofensa à soberania nacional, à dignidade da pessoa humana e à ordem pública;a presença de tradução oficial.
Além disso, o artigo 961 do CPC é claro ao afirmar que a decisão estrangeira somente terá eficácia no Brasil após a homologação pelo STJ. Essa previsão reafirma o que já está implícito na Constituição: nenhuma ordem estrangeira, por si só, pode ser aplicada em território brasileiro sem o crivo jurisdicional competente.
Um aspecto de singular importância é a cláusula de salvaguarda da ordem pública. Conforme reiterada jurisprudência do STJ, ainda que uma sentença estrangeira preencha os requisitos formais, será negada sua homologação caso contrarie princípios fundamentais do ordenamento brasileiro. Assim, decisões que impliquem discriminação, afronta à dignidade da pessoa humana, violação de direitos fundamentais ou inobservância do devido processo legal não podem ser recepcionadas.Esse filtro revela a função constitucional protetiva do STJ, que, ao homologar ou negar a homologação, exerce não apenas um controle formal, mas um controle material de compatibilidade com os valores constitucionais brasileiros.
A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, § 2º, e, após a Emenda Constitucional 45/2004, também no § 3º, reconhece a aplicabilidade dos tratados internacionais de direitos humanos e, em geral, a possibilidade de incorporação de convenções internacionais sobre cooperação jurídica. Exemplos notórios incluem a Convenção de Haia sobre Notificação de Documentos no Estrangeiro e tratados bilaterais ou multilaterais de cooperação judiciária.Esses instrumentos facilitam a recepção e o reconhecimento de ordens estrangeiras, estabelecendo padrões procedimentais uniformes. Todavia, mesmo diante de tratados, permanece a exigência constitucional da homologação ou exequatur pelo STJ, de modo que a soberania nacional não seja mitigada.
Embora a disciplina seja mais clara em relação a decisões judiciais, há que se refletir sobre ordens executivas estrangeiras, emanadas do Poder Executivo de outros Estados. Aqui, a validade é ainda mais restrita. Diferentemente das sentenças judiciais, que podem ser homologadas, ordens executivas não encontram previsão constitucional para reconhecimento direto. Na prática, somente terão efeito no Brasil caso internalizadas por meio de ato normativo próprio, como tratado internacional incorporado, lei ordinária ou decreto legislativo conforme os artigos 49, I, e 84, VIII, da Constituição. Em outras palavras, ordens executivas estrangeiras não produzem efeitos automáticos em território nacional. Sua aplicação dependerá sempre de ato normativo brasileiro que as incorpore ou autorize, resguardando, novamente, a soberania.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que decisões estrangeiras não homologadas não podem ser executadas no Brasil. Em casos emblemáticos, o STJ tem negado homologações que ofendem a ordem pública ou que carecem de requisitos processuais básicos. Ao mesmo tempo, tem admitido homologações que, mesmo versando sobre matérias complexas, respeitam os parâmetros formais e materiais exigidos. A Corte também tem reafirmado que a homologação não implica reexame do mérito da decisão estrangeira, mas tão somente a verificação de sua compatibilidade formal e material com o ordenamento brasileiro.
Em síntese, a validade de ordens executivas ou judiciais emanadas fora do território brasileiro está condicionada a um intrincado sistema de freios e contrapesos que assegura a soberania nacional sem inviabilizar a cooperação internacional. A Constituição de 1988 foi clara ao reservar ao STJ a competência exclusiva para homologar sentenças estrangeiras e conceder exequatur a cartas rogatórias, preservando a autonomia do Estado brasileiro frente a ingerências externas.Ordens judiciais estrangeiras somente adquirem eficácia no Brasil mediante homologação, e ordens executivas apenas quando incorporadas por ato normativo interno. Esse desenho jurídico revela um equilíbrio sofisticado entre abertura à cooperação internacional e proteção da soberania nacional, entre reconhecimento da autoridade alheia e preservação da própria autoridade.
Assim, o Estado brasileiro reafirma sua condição de sujeito pleno de Direito Internacional, aberto ao diálogo, mas intransigente na defesa de sua integridade constitucional. Como ensinou Hans Kelsen, o Direito é um sistema normativo que se organiza em torno de uma Grundnorm, e, no caso brasileiro, essa norma fundamental é a Constituição de 1988, que estabelece, com inequívoca clareza, os limites e as condições de recepção de atos estrangeiros.