25 de Agosto: As Funções das Forças Armadas à Luz da Constituição Federal de 1988

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Por Marcelo Henrique de Carvalho

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, fruto do processo histórico de redemocratização após mais de duas décadas de regime autoritário, é um marco jurídico-político que consagra a centralidade da cidadania, da dignidade da pessoa humana e da separação dos poderes como fundamentos estruturais do Estado brasileiro. Nesse ambiente normativo e institucional, as Forças Armadas ocupam um lugar de destaque, mas também de delicada ambivalência: por um lado, são concebidas como instituições permanentes, destinadas à defesa do país, à garantia da ordem e à proteção da soberania nacional; por outro, são rigidamente subordinadas ao poder civil, em especial à autoridade suprema do Presidente da República, em um esforço claro do constituinte de demarcar limites diante das cicatrizes deixadas pelo protagonismo militar na vida política da Nação.

É o artigo 142 da Constituição de 1988 que dispõe de maneira inequívoca sobre o papel das Forças Armadas. Trata-se de dispositivo emblemático, objeto de intensos debates hermenêuticos e de variadas interpretações ao longo das últimas décadas. Ali se lê que as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Essa redação encerra, em seu bojo, três funções constitucionais fundamentais: a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. Cada uma dessas funções, no entanto, revela complexidades que exigem cuidadosa análise. Para compreender o espírito do constituinte, é necessário perscrutar não apenas a letra da norma, mas também o seu contexto histórico, o sentido sistêmico no interior da Constituição e as implicações político-jurídicas de sua aplicação.Defesa da Pátria: a missão clássicaA defesa da Pátria é, sem dúvida, a mais tradicional e consensual das funções atribuídas às Forças Armadas. Ela traduz a razão de ser de qualquer força militar no plano internacional: garantir a soberania e a integridade territorial contra ameaças externas. A Constituição de 1988, ao afirmar esse dever, insere-se na tradição constitucional brasileira e dialoga com um princípio universal de organização estatal. Hans Kelsen já observara que a existência de um aparato militar é inerente à própria ideia de Estado soberano, uma vez que a defesa externa constitui elemento essencial da autonomia política.

No caso brasileiro, a missão de defesa da Pátria adquire contornos singulares. O país, detentor de dimensões continentais, de vastas fronteiras terrestres e marítimas e de recursos naturais estratégicos, demanda uma estrutura de defesa robusta, capaz de preservar não apenas o território físico, mas também os interesses geopolíticos e econômicos associados. O conceito de Pátria, assim, não se restringe ao espaço geográfico, mas se estende à defesa da população, das riquezas nacionais e da autodeterminação política. Nesse sentido, a função constitucional das Forças Armadas transcende a mera reação a eventuais agressões estrangeiras e se projeta na estratégia de dissuasão, de monitoramento de fronteiras e de proteção das vias de comunicação marítimas e aéreas.

Talvez o aspecto mais instigante do artigo 142 seja a referência à garantia dos poderes constitucionais. O texto constitucional, ao inserir essa função, confere às Forças Armadas uma responsabilidade que não se limita à defesa externa, mas que toca diretamente a esfera da ordem interna e da estabilidade das instituições republicanas. O que significa, afinal, garantir os poderes constitucionais?

Primeiramente, é importante sublinhar que essa garantia não pode ser lida como uma autorização para intervenção militar na vida política, nem como um salvo-conduto para arbitrar conflitos entre os Poderes. Ao contrário, deve ser interpretada em harmonia com os princípios democráticos que permeiam toda a Constituição de 1988. A função de garantia é, em verdade, uma dimensão de resguardo, em que as Forças Armadas atuam como instrumentos do poder civil, assegurando que as instituições possam funcionar livremente, sem serem ameaçadas por forças externas ou por convulsões internas de tal magnitude que comprometam a normalidade constitucional.

Trata-se, portanto, de uma função subordinada. A autoridade suprema das Forças Armadas é o Presidente da República, que, eleito pelo voto popular, encarna a soberania democrática. Dessa forma, quando se fala em garantir os poderes constitucionais, não se atribui às Forças Armadas um papel de árbitro, mas de guardião sob comando civil, sempre na perspectiva de preservar a integridade da ordem constitucional vigente. O Supremo Tribunal Federal já reafirmou essa leitura ao frisar que não existe, no ordenamento de 1988, qualquer espaço para tutela militar sobre os demais poderes.

A terceira função constitucional das Forças Armadas refere-se à Garantia da Lei e da Ordem, a famosa GLO. Aqui se encontra um dos pontos mais polêmicos do artigo 142, pois abre margem para a atuação das Forças Armadas em situações de crise interna, quando as forças de segurança tradicionais se mostram insuficientes. Trata-se de uma missão subsidiária e excepcional, acionada apenas por iniciativa de qualquer dos poderes constitucionais, o que reforça o princípio da subordinação à ordem civil.

A utilização de militares em operações de GLO é prática recorrente na história recente do Brasil. Vimos sua aplicação em episódios de greve de policiais, em grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, e em operações de segurança pública em regiões conflagradas, notadamente no Rio de Janeiro. Embora constitucionalmente prevista, essa função suscita tensões jurídicas e políticas, sobretudo porque projeta sobre as Forças Armadas responsabilidades típicas de polícia, algo que contrasta com sua formação, sua doutrina e sua natureza institucional.

A doutrina constitucional reconhece que o recurso às Forças Armadas em GLO deve ser exceção absoluta, sob pena de militarização da segurança pública e de distorção do papel primordial dessas instituições. José Afonso da Silva, em seu clássico “Curso de Direito Constitucional Positivo”, adverte que a atuação militar em atividades policiais deve ser entendida como medida emergencial, transitória e controlada, sob estrita supervisão civil. É que o risco da banalização da GLO reside em corroer a própria lógica da democracia, substituindo a polícia cidadã, formada para proteger e dialogar com a população, por uma força treinada para o combate.

As funções constitucionais das Forças Armadas não podem ser compreendidas fora de sua moldura organizacional. O artigo 142 sublinha que elas se estruturam na hierarquia e na disciplina, características que garantem a coesão e a eficácia da instituição. Contudo, a verdadeira pedra angular da relação entre militares e Estado democrático de direito é a subordinação ao poder civil. A autoridade suprema das Forças Armadas é o Presidente da República, não havendo espaço, na ordem constitucional vigente, para qualquer projeto de tutela militar sobre a política ou sobre os demais poderes.

Esse ponto merece destaque porque a Constituição de 1988 emerge exatamente da experiência traumática de um regime em que os militares assumiram protagonismo político. O constituinte, atento a essa memória, procurou estabelecer um equilíbrio delicado: reconhecer a importância vital das Forças Armadas para a defesa nacional, mas, ao mesmo tempo, afastar qualquer tentação de ingerência em assuntos políticos. É nesse sentido que a doutrina constitucional mais sólida tem insistido: as Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo, e sua missão é proteger a Nação e a Constituição, não orientar a vida política.

O paradoxo da força constitucionalEm síntese, as funções constitucionais das Forças Armadas no Brasil são tripartites: defender a Pátria, garantir os poderes constitucionais e, de forma excepcional, assegurar a lei e a ordem. Essas funções, todavia, não são absolutas nem autônomas. São funções subordinadas à ordem democrática, ao poder civil e ao império da Constituição. A grande conquista de 1988 foi, precisamente, enquadrar a força dentro da lei, transformar a potência militar em instrumento da República e não em senhor de seus destinos.

A tensão entre força e direito é antiga na história da humanidade. Desde Maquiavel até Carl Schmitt, passando por Hobbes e Rousseau, pensadores se debruçaram sobre a relação entre poder coercitivo e legitimidade política. O constituinte de 1988, consciente dessa tensão, optou por um modelo em que a espada só se ergue quando a lei a convoca, e em que o soldado não é guardião de si mesmo, mas servo da Constituição. Eis o grande ensinamento da Carta de 1988: as Forças Armadas são, ao mesmo tempo, pilar de segurança e prova de que a verdadeira força do Estado democrático de direito reside não nos canhões, mas na supremacia da lei e da vontade soberana do povo.

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